Lembranças da Caetité dos meus tempos
Num dia de sol qualquer, estava tomando conta do mercadinho
da minha mãe e, da porta, apreciava o pouco movimento da cidade. Morávamos na
Rua 2 de Julho, a que liga o Mulungu, que era então a entrada oficial de
Caetité, à praça da Catedral.
Às vezes passava um ou outro amigo, e trocávamos algumas
palavras. Era início da tarde. De repente uma figura diferente apareceu carregando
quatro pesadas malas. Devia ter uns 60 anos e se vestia como um padre, só que
sua batina era clara, talvez bege, talvez areia... não me lembro bem. Me
cumprimentou. Pelas suas feições nórdicas e sotaque, dava para ver que era
europeu. Um detalhe chamou minha atenção: sua maneira de carregar as malas.
Segurava na alça de duas e caminhava cerca de 20 metros, onde as deixava, e
voltava para repetir o processo com as outras. Aquilo me ensinou alguma coisa.
Descobri depois que era um padre e que passaria algum tempo em
nossa cidade. Talvez fosse um missionário.
Não me lembro seu nome, mas ainda guardo, após algumas
décadas, suas feições cansadas e sua pele branca avermelhada. Mas o que mais
ficou foi a lição de como carregar quatro malas ao mesmo tempo.
Assim era a Caetité onde cresci. Uma cidade pequena, onde
qualquer novidade era explorada, comentada, contada em prosa e verso. Todos se
conheciam, então era muito fácil espalhar as notícias.
Cidade pequena e distante da capital, dos grandes centros... Com
diminutas opções de distração, quando chegava um circo ou um parque e se
instalava no Mulungu ou na feira velha, todos nos alvoroçávamos e corríamos
para ver. Para assistir aos espetáculos ou nos balançarmos nas barcarolas, girarmos
nas voltas da Roda Gigante.
Quantos palhaços povoaram minha vida de criança e adolescente?
Não sei dizer. Mas alguns marcaram mais que outros, e me lembro de Zé Linguiça,
Garrafinha, Marcota e Pichurim... foi deles que guardei o nome e a música da
Marieta:
“A
Marieta é uma preta bonita
Dessas
pretas maciças
De
preta chega a lustrar
Quando
ela anda balança de popa a proa
Eu
conheço é gente boa
Que
tem vontade de encostar
Ai
Marieta, ai minha preta,
Nem
que o diabo arranque o rabo
Eu não deixo a Marieta...”
Outra diversão ocasional era o teatro. Ah! O teatro! Que
coisa mais linda era entrar no Teatro Centenário de Caetité, tão saudoso que
chega a doer meu coração... era lindo, espaçoso, carismático. Era nosso! Mas...
como a maldade humana não tem limites, ele foi demolido por um prefeito.
Lamentável assassinato do templo da arte!
Naquele prédio funcionou o teatro e o cinema. Primeiro o de
Guilherme de Castro, ousado piloto que, adaptando um motor de um caminhão Chevrolet,
conseguiu ali fazer funcionar uma bela sala de espetáculos da Sétima Arte.
Vítima de um desastre aéreo, sua viúva assumiu seu lugar, mas, de repente e não
mais que, viu seu maquinário atirado à rua pelo então mandatário da cidade, Dr.
Ovídio Teixeira, de quem seu marido era inimigo político. Dona Maria Pinho, viúva
de Guilherme de Castro e mãe dos seus filhos, mulher guerreira e destemida,
arregaçou as mangas, abrigou seu maquinário e construiu um novo prédio na Rua
Barão, instalando ali o Cine Vitória, onde mais tarde brilhou o primeiro
Cinerama da região.
Naquele recanto era exibido um filme novo a cada dia da
semana, sendo que aos domingos eram dois, pois à tarde tinha a famosa matinê
das crianças.
E ali todos nós que habitávamos aquela terra abençoada,
tivemos momentos dourados e inesquecíveis!
Para fazer concorrência ao Cine Vitória, o velho Zuza, aquele
em torno de quem havia uma lenda do “diabinho na garrafa”, alugou o prédio do
Teatro Centenário, e ali estabeleceu o “Cine Caetité”, que também nos divertiu
por um bom tempo.
Por falar em Seu Zuza, conta a história que ele aprisionou um
pequeno Cramulhão numa garrafa (tipo aquelas que aparecem nas histórias dos “gênios”
orientais) e que era o dito cujo que o fazia tão rico. E isso deve ter chegado aos ouvidos de um
escritor de novelas, que escreveu o folhetim global “Paraiso”, exibido em 1982,
onde Cláudio Correia e Castro incorporava um rico fazendeiro que tinha o capetinha
na garrafa.
Há muito o que contar, mas isso deve ser feito aos poucos. São
lembranças que ficaram em nós como marcas de uma vida bem vivida, onde
conhecemos a essência da felicidade e magia de uma terra única para nossos
sonhos. Há histórias e estórias. Há pessoas que nos marcaram de alguma forma,
há as que ficaram no meio do caminho, as que ainda estão perto de nós. E
aquelas que já se foram. Mas o que nos marcou de verdade, o que nos ensinou
alguma coisa, fica e ficará para sempre.
Aquela menina da 2 de Julho sente saudades sim, mas nunca foi
saudosista. Sente saudades do que valeu a pena, do que a ensinou e a fez
crescer. Saudades daquilo que acreditou, apostou e seguiu em frente com seu
exemplo. Essa menina hoje é uma contadora de causos. E aqui deixa uma palavra
de fé, pois o que aprendeu naquela terra onde nasceu, seguirá em seu coração e
sua memória até o final.
Esta é a magia de ser Caetité!
Luzmar Oliveira – 15jun2020